11.5.12

Figurinha Carimbada: Zico
Nascido em Quintino, subúrbio carioca, Arthur Antunes Coimbra era chamado de Galinho. Talvez por ciscar em arrancadas retumbantes ao gol. Já se disse que na bola, estando aos seus pés, nasce uma flor. O que nunca se contou é que a cada cobrança de falta, drible ou lançamento em ponto futuro, Zico mostrava saber a relação entre a teoria da relatividade de Einstein e a música de Mozart. Tempo, espaço e intensidade aos pés e aos olhos do camisa dez da Gávea que transformou um clube de médio porte na maior torcida do país e no maior time do Planeta, naqueles dias. Dizem que foi o Pelé branco e que não ganhou a copa de 82 porque a arte, ou melhor, a bola, é como a rosa. Não tem porquê.

24.12.11

Natal: tempo de colheita.

Enquanto para muitos o Natal é um período de consumismo e de formalidades banais, para mim, independente do catolicismo, do cardecismo, do budismo, das religiões africanas ou do ateísmo, Natal é um tempo em que eclode o nascimento enquanto presença. Para quem já nasceu, a presença do nascimento tem outro nome: renascimento.

Mais do que nascer duas vezes durante a vida, renascer talvez seja continuar nascendo mesmo após a travessia para a morte.

Quando temos uma família- pais, irmãos, avós, filhos- deixamos coisas que perduram para além de nossa vida biológica. Lembro sempre que em momentos diferentes da minha infância vovó Nelly e tia Mimi me disseram que não estariam vivas pra me ver formado e casando, mas que estavam me educando para ser um homem de bem.

Ao trazer isso à memória e viver tudo de novo por dentro, pensei pela primeira vez que um dia poderei formar uma família. Nova, aberta. No tempo preciso. Um abacateiro. antes disso: anoitecerá tomate, amanhecerá mamão.

Com isso senti que vovó e titia também renascem, em cada movimento meu, ligando as duas pontas da vida. Um dia, também ligarei a próxima e não será mais só eu e elas. Será a genealogia do amor. O DNA do afeto, indescritível e indecifrável. Frutificando.

Fazendo da vida um elogio da simplicidade, aquelas senhoras cultivaram o futuro sem nunca ouvir falar em Nietzsche, mas cada afago e cada educar diziam assim: - Torna-te quem tu és.

É bonito saber quem me tornei.Que me tornei o aquilo que sempre fui, mas poderia nunca ter alcançado. Colher o fruto lembrando da força das raízes. Toda árvore é uma seta apontada para o céu. Hoje sou um futuro. Amanhã serei um passado. Mas sempre presente. Quando não for tempo, talvez também seja vovó. talvez também seja minha tia: para alguém. Em alguém. Com alguém. Renascendo.

Primeira Gare

A noite;

Quanto medo
Do escuro
No vazio
Onde mora
A desvida.

O quarto:

Estrelas
No céu
Do teto
Carrossel
Cintilante
Girando tempos
Que correm
Para trás.

Vovó:

Mosquitos
Cortinado
Xarope
Sonhe com os anjinhos
Um beijo que ainda é
E uma oração
Ao pé-da-cama;
O mundo costurado
No cobertorzinho.

A vida;

Saudade.

10.1.11

Por uma estética da imagem

Sempre que se fala academicamente de arte, lá se vão novelos de teorias, conceitos e métodos; olhares sempre externos à obra, em busca de um lugar ao sol no eldorado da crítica. Acontece que enquadramento conceitual não é tudo que se há por fazer: é preciso também salvaguardar um lugar...para a própria arte.
Para pensar em arte, nada melhor...do que uma obra de arte! Me cavalga hoje o exemplo do filme Morte em Veneza, de Visconti; ali se fala sobre arte com arte. A angústia paradoxal do músico que absorve o real por conceitos, moralmente, como se arte fosse algo alcançável apenas pelo absoluto do espírito, por uma educação correta, por caráter, pelo uso da razão para construir. A arte como manifestação apolínea.

O filme circula muito em torno do embate entre a visão de Gustav Auschenbach e a de seu amigo Alfred; Dioniso nos olhos, este pensa a música como algo ao qual se chega pelos sentidos, fora da moralidade de conceitos que expressam valores já disponibilizados pela cultura humanista historicamente. Estar fora da moral, fora do conceito, é estar dentro do que não possui fora: ou a realidade tem beiradas? Para Alfred, um musico não difere de sua arte enquanto humano, quando há experienciação, mesmo que seja catrastófica, caótica, dolorosa, e não apenas conceitualização. Uma imagem potente disso é o sonho de Gustav: vaiado numa apresentação, se tranca num camarim, enquanto Alfred quer que ele tenha contato com aqueles que reclamavam de sua música, quer atirá-lo aos cães, insaciáveis. Agora não há conceito. Agora não existe representação. Artista e arte são feitos vida: - Agora você já pode caminhar com sua música rumo ao seu túmulo! Fazer arte não é suficiente. Importa é ser arte! Mesmo que o preço disso seja a ruína social, moral, biológica; mesmo que seja a destruição da vida que vigora em si.

O que a arte destrói, com radicalidade, é essa necessidade científica de se distanciar das coisas e olhá-las com o escudo do embasamento teórico. Por que não ver por si? Por que não correr o risco de se soltar e sentir dor e alegria? Por que não ver e ser o que a própria coisa emana? É isso que vive Gustav, ao se apaixonar, diante da figura do menino Tadzio. Uma paixão pelo belo, a-moral, onde paradoxalmente não importa nenhum toque físico sequer, pois a paixão não é pelo sujeito, bíos, e sim pela vida em si, zoé. O menino é a mudança de uma interpretação conceitual da realidade, para uma vivência visceral do real e isso não é externo a dor, não tem moral nem sistema: São imagens, oferecendo à vida, sentido.

Por isso, nada melhor do que pensar e vivenciar arte, pela arte. Morte em Veneza prescinde de teóricos para cumprir isso, da mesma forma que O céu de Lisboa, de Win Wenders, ao falar de cinema. O que cabe nessa fala é o que des-cabe numa obra de arte: produzir imagens que nos movimentam questões, por falar com nossa dimensão humana e não modelada por humanismos tacanhos. Mesmo que a vida seja tão bela que o minúsculo do corpo não suporte o que matéria não tem. Mesmo que tanto céu, tanto mar, tanto menino, todo, preencham de nada o corpo que se desmancha frente ao belo e isso seja insuportável, é necessário viver e não apenas verificar, sistematizar.

Viver é preciso. Mas viver, não é preciso.

20.12.10

Dentre as questões que se apresentam ao homem, talvez a mais ambígua seja a finitude.Como não se alegrar com um tempo finito, onde buscamos menos que realizar coisas, imprimir um sentido à vida, que nos possibilite a sublime consumação de um dia, como naquele samba, virar constelação?

Ao mesmo tempo, tempinho, tempão,como não sentir dor ao saber que não só o que fere, mas também a alegria, o sorriso, o peito explodindo plenipotências, tem um dia seu para acabar? Lembro do filósofo que lembra dos estóicos; estes buscavam uma certa frieza: menos felicidade para ter menos dor. Acho que até entendo o porque disso;quando amamos muito, também sentimos a punhalada exata de que toda a leveza vai acabar. E isso é um fardo.

Antecedente a isso, penso por mim mesmo que a leveza da vida também deve consistir em não ser eterno. Idade só tem é o mundo. A natureza. Homem é capim que seca, estala e rebrota. O peso de sempre subir com a pedra que rolou do barranco? Em mim não.

Parece que agora o texto ( a vida?) chegou numa emboscada. Ou isto ou aquilo? Isto. Sempre isto; escolher um dos lados é coisa de quem quer ganhar. Como quero apenas viver o meu tempo, me faço múltiplo. Como os colossos do esporte que nadam, remam, boxam, se hipertrofiam de glórias....rumo à morte!

Como temos sempre que decidir lutar, já escolhi minha categoria: peso-pena.

18.9.10

Belíssimo o Amadeus, de Milus Forman!

O filme narra como a obra opera em Wolfgang Amadeus Mozart e não como o autor explica a arte, ou como se costuma fazer, como a sociedade explica a arte....
Na sociologia de Norbert Elias Mozart depende materialmente das cortes austríacas e isso tem o peso de destruí-lo enquanto indivíduo. Sua música seria então produto de seu tempo: a sociedade cortesã do século XVIII e todo seu constrole.

Ocorre que a música em específico e arte, em geral, não são tributárias de tempos contados em espaços já estabelecidos. Música é o que instaura tempo e espaço, suspendendo-os sonoramente! Quantas notas cabem no tempo? Infinitas! Quantos tempos cabem nas notas? Todos possíveis imagináveis e ainda por serem criados...

É rompendo essa dicotomia que Forman sinfoniza uma bela obra, onde o drama de Mozart mais do que ser refém da sociedade de cortes é exatamente ele se colocar de forma anacrônica, atemporal, diante da relação com a Igreja, com o mecenato, com o Imperador...Mozart vivia em outra instância: como na cena onde seu pai e sua esposa discutem e ele simplesmente se fecha no quarto. Surge, miraculosamente aos nossos ouvidos a música que lhe sobrevém. É este seu tempo espaço: outra instãncia, a poética...

O jeito que vemos a composição das peças não tem centro algum no homem, no sujeito, e sim na música...Não há texto, fala...O que impera é a música: partituras perfeitas, sem cópia e escritas de uma vez só, sem correção. Pode o homem sozinho isso tudo? Gênio, menos do que quem dá é aquele que muito recebe...

É o inverso da cegueira de Salieri, que na película quer o dom de Mozart pra si e ao força-lo a compor rapidamente o Requiém, acaba por matá-lo: espécie subjetivada de Édipo que fura...os ouvidos!

Por isso, recomendo muito " Amadeus"!!

17.9.10

Gira-mundo


I-

De uma roda, de algo que gira, o centro é sempre estático, embora em movimento...Penso em carros de boi, rodando mundo-à-fora, com a roda que gira o carro e o carro que roda o mundo. Mas como pode algo igual estar, no tempo, diferente? Contradição? Paradoxos. É deles que se exprime o que ainda não foi dito. E o que eu ainda nunca disse é que acontece em mim sempre algo igual, mas que retorna diferente. Sempre outro mesmo: Sei como sei pelos olhos dela. E não é isso o amor?

II-

Talvez. Vivaldo estava cansado de ser um só. Queria era ser só um. Todos os dias, via nos olhos da mulher o reflexo de si; nos dois olhos. Uma dobra? - Se me vejo dois e sou um só, não posso estar inteiro e sim partido.É ela. Toda vez que me vejo naquela luminescência, reparto-me em constelações de eus...Quantos eus existem? existe um?

III-

Belo dia, Vivaldo deixou da coisa de partir e ficou: todo. A exultação de ser ele. De ele todo ser bonito. Adjetivou-se demais. Agora não reconheciam sua beleza. Era sujeito indeterminado. Pela primeira vez achou que amava mesmo aquela e chamou-lhe até de amor. O próprio amor?! E amor é coisa chegável que se tenha só para si?

IV-

A estória pode parecer curta. Mas não são os atos que nos fazem. Somos orquestradamente feitos da matéria invisível que compõe o molde de nossos atos. E depois desmolda. Atuar é sempre começar algo. Mas Vivaldo queria viver e pensava que isso fosse começar alguma coisa, e que talvez essa coisa fosse o amor; todo aquele seu. Inteiro ou metade? Na perda de dúvidas, amou. Amou tanto, que por amar até o amor, odiou: queria nos olhos dela, amar como a si mesmo.Queria que o espelho se voltasse contra ele sem quebrar. Odiou aqueles olhos...Agora de tempestade!

V-

O amor no meio e o ódio rodando. Mas o igual sempre volta diferente. Daquele ódio pela diferença, quis amar o que via nela de igual, mas não pode mais: já também se odiava. E foi o ódio que sentiu de tudo que se repetia nas veias e nos olhos dela que recobrou, no fim, o meio da roda: amou o que retornava novo, em frescores. Cores re-novadas. Vivaldo ali dançou, cantou, fez de qualquer espaço seu lugar; pediu até ao sol que botasse seu chapéu de festa e mais o alumiasse...Até a manhã seguinte. Mal sabia que era o começo do fim. Conto curto porque a vida corta forte: Vivaldo acabou foi começando...Pois do ódio renasceu um amor,que sentido sem razão, foi assim...musicando seu fim.

19.5.10

Encanta-dor

Na noite daquele dia que quase não há tudo corria bem. Era minha noite de apenas coordenar o pré-vestibular comunitário. Então, adjutorava o professor de Português. Aula não dava. E nem poderia. Só não sabia ainda era o motivo ou o des-motivo disso.

A energia dos alunos é gostosa: sentir um futuro grávido de sonhos abre o presente.

Mas nem sempre é assim. Muitos, a maioria, quer é saber o que vai sr quando crescer, e não quem. Um chamado João Heraclitino desenha diplomas na carteira escolar durante a aula de cálculo. Realmente, é este um sonho bem funcional. Mas existe aí uma força de rio que corre silencioso subterraneamente; é um sonho. E sonho não tem função. Não somos nós que sonhamos: somos é sonhados. Trata-se de um existir real, solto das formas? Pode? Sonhar é prender um peixe no vento. E soltar um menino em seus diplomas...O sonho sonha o menino.Quem se prende no diploma sai de entrar em si.

O fato- que é feito de vento- é que na noite desse dia tudo corria bem. Mas já desde a tardinha algo deformava oculto. Alguns alunos, no penoso dever de dar conta de toda a matéria, juntaram-se num grupo: monitorias. João Heraclitino ralhava consigo: - meu diploma. Minha carreira para fazer a vida, pensava com o corpo inteiro. Apenas os olhos se desviavam disso, tentando copiar o por-fazer.

E foi quando alguém-que-não-sei-quem chegou na porta do curso para doar livros. Enormidade de folhas, capas-duras e colorido algum. Mas os alunos esqueceram de perguntar qual o conteúdo a ser doado e o material se desviou. Esquivou-se já desimportante, pois o dono decidiu depositar tudo numa rua escura dos arrabaldes.

Já era o horário do intervalo. Juntos foram todos à padaria, como era costumeiro. Comuns, comum-unitários: comunitários das coisas, iam desfiando acelerada prosa quando aconteceu. Meus alunos, agora algum ganharia os braços e pernas do mundo e nunca mais seria o meu, encontraram pilhas de livros lançados numa calçada escura, no ermo do coração de São Francisco, bairro de nome humildezinho; pois foi Francisco homem alheio a coisas com formato pré-pronto e que ao invés de juntar apartam. Um por um, foram se felicitando, descobrindo livros de cálculo e de administração. Porém algo naquelas pilhas desabou e João Heraclitino desconheceu-se.

Empolgados, os alunos levaram para o curso dezenas de livros. Exauriram braços, pernas, lombares...Quando tudo já era achado e desimportante e sobrava quase nada, quase o nada, foi que João Heráclito chegou lá. Fuxicou os restantes e encontrou Pessoa. Quando tudo já era perdido e desimportante, João Heráclito achou Drummond e Rosa. Naquela pilha de xepas, eles só podiam ser inúteis. Ao retornar, João me disse decepcionado: -Eles não tem utilidade..De súbito, devolvi: - Mas João; é este o seu encanto. DEpois dali não tive mais o que ensinar. Se o mundo fosse feito apenas de encantados, a terra desabava no céu.
Fosse ele feito apenas de encantadores, seria o céu quem desbava na terra. Mas se o céu desabasse na terra, a terra também precisaria desabar no céu: Encantador ou encantado? Agora João é encanta-dor. Transpassar o que sangra, mas também é encantado: pois foi o sonho que sonhou o peixe solto no vento, descobrindo o mar. Água da palavra.

Acho que foi assim que aprendi a ensinar o que é inútil.