11.5.12
24.12.11
Enquanto para muitos o Natal é um período de consumismo e de formalidades banais, para mim, independente do catolicismo, do cardecismo, do budismo, das religiões africanas ou do ateísmo, Natal é um tempo em que eclode o nascimento enquanto presença. Para quem já nasceu, a presença do nascimento tem outro nome: renascimento.
Mais do que nascer duas vezes durante a vida, renascer talvez seja continuar nascendo mesmo após a travessia para a morte.
Quando temos uma família- pais, irmãos, avós, filhos- deixamos coisas que perduram para além de nossa vida biológica. Lembro sempre que em momentos diferentes da minha infância vovó Nelly e tia Mimi me disseram que não estariam vivas pra me ver formado e casando, mas que estavam me educando para ser um homem de bem.
Ao trazer isso à memória e viver tudo de novo por dentro, pensei pela primeira vez que um dia poderei formar uma família. Nova, aberta. No tempo preciso. Um abacateiro. antes disso: anoitecerá tomate, amanhecerá mamão.
Com isso senti que vovó e titia também renascem, em cada movimento meu, ligando as duas pontas da vida. Um dia, também ligarei a próxima e não será mais só eu e elas. Será a genealogia do amor. O DNA do afeto, indescritível e indecifrável. Frutificando.
Fazendo da vida um elogio da simplicidade, aquelas senhoras cultivaram o futuro sem nunca ouvir falar em Nietzsche, mas cada afago e cada educar diziam assim: - Torna-te quem tu és.
É bonito saber quem me tornei.Que me tornei o aquilo que sempre fui, mas poderia nunca ter alcançado. Colher o fruto lembrando da força das raízes. Toda árvore é uma seta apontada para o céu. Hoje sou um futuro. Amanhã serei um passado. Mas sempre presente. Quando não for tempo, talvez também seja vovó. talvez também seja minha tia: para alguém. Em alguém. Com alguém. Renascendo.
Primeira Gare
A noite;
Quanto medo
Do escuro
No vazio
Onde mora
A desvida.
O quarto:
Estrelas
No céu
Do teto
Carrossel
Cintilante
Girando tempos
Que correm
Para trás.
Vovó:
Mosquitos
Cortinado
Xarope
Sonhe com os anjinhos
Um beijo que ainda é
E uma oração
Ao pé-da-cama;
O mundo costurado
No cobertorzinho.
A vida;
Saudade.
10.1.11
Sempre que se fala academicamente de arte, lá se vão novelos de teorias, conceitos e métodos; olhares sempre externos à obra, em busca de um lugar ao sol no eldorado da crítica. Acontece que enquadramento conceitual não é tudo que se há por fazer: é preciso também salvaguardar um lugar...para a própria arte.
Para pensar em arte, nada melhor...do que uma obra de arte! Me cavalga hoje o exemplo do filme Morte em Veneza, de Visconti; ali se fala sobre arte com arte. A angústia paradoxal do músico que absorve o real por conceitos, moralmente, como se arte fosse algo alcançável apenas pelo absoluto do espírito, por uma educação correta, por caráter, pelo uso da razão para construir. A arte como manifestação apolínea.
O filme circula muito em torno do embate entre a visão de Gustav Auschenbach e a de seu amigo Alfred; Dioniso nos olhos, este pensa a música como algo ao qual se chega pelos sentidos, fora da moralidade de conceitos que expressam valores já disponibilizados pela cultura humanista historicamente. Estar fora da moral, fora do conceito, é estar dentro do que não possui fora: ou a realidade tem beiradas? Para Alfred, um musico não difere de sua arte enquanto humano, quando há experienciação, mesmo que seja catrastófica, caótica, dolorosa, e não apenas conceitualização. Uma imagem potente disso é o sonho de Gustav: vaiado numa apresentação, se tranca num camarim, enquanto Alfred quer que ele tenha contato com aqueles que reclamavam de sua música, quer atirá-lo aos cães, insaciáveis. Agora não há conceito. Agora não existe representação. Artista e arte são feitos vida: - Agora você já pode caminhar com sua música rumo ao seu túmulo! Fazer arte não é suficiente. Importa é ser arte! Mesmo que o preço disso seja a ruína social, moral, biológica; mesmo que seja a destruição da vida que vigora em si.
O que a arte destrói, com radicalidade, é essa necessidade científica de se distanciar das coisas e olhá-las com o escudo do embasamento teórico. Por que não ver por si? Por que não correr o risco de se soltar e sentir dor e alegria? Por que não ver e ser o que a própria coisa emana? É isso que vive Gustav, ao se apaixonar, diante da figura do menino Tadzio. Uma paixão pelo belo, a-moral, onde paradoxalmente não importa nenhum toque físico sequer, pois a paixão não é pelo sujeito, bíos, e sim pela vida em si, zoé. O menino é a mudança de uma interpretação conceitual da realidade, para uma vivência visceral do real e isso não é externo a dor, não tem moral nem sistema: São imagens, oferecendo à vida, sentido.
Por isso, nada melhor do que pensar e vivenciar arte, pela arte. Morte em Veneza prescinde de teóricos para cumprir isso, da mesma forma que O céu de Lisboa, de Win Wenders, ao falar de cinema. O que cabe nessa fala é o que des-cabe numa obra de arte: produzir imagens que nos movimentam questões, por falar com nossa dimensão humana e não modelada por humanismos tacanhos. Mesmo que a vida seja tão bela que o minúsculo do corpo não suporte o que matéria não tem. Mesmo que tanto céu, tanto mar, tanto menino, todo, preencham de nada o corpo que se desmancha frente ao belo e isso seja insuportável, é necessário viver e não apenas verificar, sistematizar.
Viver é preciso. Mas viver, não é preciso.
20.12.10
Ao mesmo tempo, tempinho, tempão,como não sentir dor ao saber que não só o que fere, mas também a alegria, o sorriso, o peito explodindo plenipotências, tem um dia seu para acabar? Lembro do filósofo que lembra dos estóicos; estes buscavam uma certa frieza: menos felicidade para ter menos dor. Acho que até entendo o porque disso;quando amamos muito, também sentimos a punhalada exata de que toda a leveza vai acabar. E isso é um fardo.
Antecedente a isso, penso por mim mesmo que a leveza da vida também deve consistir em não ser eterno. Idade só tem é o mundo. A natureza. Homem é capim que seca, estala e rebrota. O peso de sempre subir com a pedra que rolou do barranco? Em mim não.
Parece que agora o texto ( a vida?) chegou numa emboscada. Ou isto ou aquilo? Isto. Sempre isto; escolher um dos lados é coisa de quem quer ganhar. Como quero apenas viver o meu tempo, me faço múltiplo. Como os colossos do esporte que nadam, remam, boxam, se hipertrofiam de glórias....rumo à morte!
Como temos sempre que decidir lutar, já escolhi minha categoria: peso-pena.
18.9.10
O filme narra como a obra opera em Wolfgang Amadeus Mozart e não como o autor explica a arte, ou como se costuma fazer, como a sociedade explica a arte....
Na sociologia de Norbert Elias Mozart depende materialmente das cortes austríacas e isso tem o peso de destruí-lo enquanto indivíduo. Sua música seria então produto de seu tempo: a sociedade cortesã do século XVIII e todo seu constrole.
Ocorre que a música em específico e arte, em geral, não são tributárias de tempos contados em espaços já estabelecidos. Música é o que instaura tempo e espaço, suspendendo-os sonoramente! Quantas notas cabem no tempo? Infinitas! Quantos tempos cabem nas notas? Todos possíveis imagináveis e ainda por serem criados...
É rompendo essa dicotomia que Forman sinfoniza uma bela obra, onde o drama de Mozart mais do que ser refém da sociedade de cortes é exatamente ele se colocar de forma anacrônica, atemporal, diante da relação com a Igreja, com o mecenato, com o Imperador...Mozart vivia em outra instância: como na cena onde seu pai e sua esposa discutem e ele simplesmente se fecha no quarto. Surge, miraculosamente aos nossos ouvidos a música que lhe sobrevém. É este seu tempo espaço: outra instãncia, a poética...
O jeito que vemos a composição das peças não tem centro algum no homem, no sujeito, e sim na música...Não há texto, fala...O que impera é a música: partituras perfeitas, sem cópia e escritas de uma vez só, sem correção. Pode o homem sozinho isso tudo? Gênio, menos do que quem dá é aquele que muito recebe...
É o inverso da cegueira de Salieri, que na película quer o dom de Mozart pra si e ao força-lo a compor rapidamente o Requiém, acaba por matá-lo: espécie subjetivada de Édipo que fura...os ouvidos!
Por isso, recomendo muito " Amadeus"!!
17.9.10
I-
De uma roda, de algo que gira, o centro é sempre estático, embora em movimento...Penso em carros de boi, rodando mundo-à-fora, com a roda que gira o carro e o carro que roda o mundo. Mas como pode algo igual estar, no tempo, diferente? Contradição? Paradoxos. É deles que se exprime o que ainda não foi dito. E o que eu ainda nunca disse é que acontece em mim sempre algo igual, mas que retorna diferente. Sempre outro mesmo: Sei como sei pelos olhos dela. E não é isso o amor?
II-
Talvez. Vivaldo estava cansado de ser um só. Queria era ser só um. Todos os dias, via nos olhos da mulher o reflexo de si; nos dois olhos. Uma dobra? - Se me vejo dois e sou um só, não posso estar inteiro e sim partido.É ela. Toda vez que me vejo naquela luminescência, reparto-me em constelações de eus...Quantos eus existem? existe um?
III-
Belo dia, Vivaldo deixou da coisa de partir e ficou: todo. A exultação de ser ele. De ele todo ser bonito. Adjetivou-se demais. Agora não reconheciam sua beleza. Era sujeito indeterminado. Pela primeira vez achou que amava mesmo aquela e chamou-lhe até de amor. O próprio amor?! E amor é coisa chegável que se tenha só para si?
IV-
A estória pode parecer curta. Mas não são os atos que nos fazem. Somos orquestradamente feitos da matéria invisível que compõe o molde de nossos atos. E depois desmolda. Atuar é sempre começar algo. Mas Vivaldo queria viver e pensava que isso fosse começar alguma coisa, e que talvez essa coisa fosse o amor; todo aquele seu. Inteiro ou metade? Na perda de dúvidas, amou. Amou tanto, que por amar até o amor, odiou: queria nos olhos dela, amar como a si mesmo.Queria que o espelho se voltasse contra ele sem quebrar. Odiou aqueles olhos...Agora de tempestade!
V-
O amor no meio e o ódio rodando. Mas o igual sempre volta diferente. Daquele ódio pela diferença, quis amar o que via nela de igual, mas não pode mais: já também se odiava. E foi o ódio que sentiu de tudo que se repetia nas veias e nos olhos dela que recobrou, no fim, o meio da roda: amou o que retornava novo, em frescores. Cores re-novadas. Vivaldo ali dançou, cantou, fez de qualquer espaço seu lugar; pediu até ao sol que botasse seu chapéu de festa e mais o alumiasse...Até a manhã seguinte. Mal sabia que era o começo do fim. Conto curto porque a vida corta forte: Vivaldo acabou foi começando...Pois do ódio renasceu um amor,que sentido sem razão, foi assim...musicando seu fim.
19.5.10
Encanta-dor
Na noite daquele dia que quase não há tudo corria bem. Era minha noite de apenas coordenar o pré-vestibular comunitário. Então, adjutorava o professor de Português. Aula não dava. E nem poderia. Só não sabia ainda era o motivo ou o des-motivo disso.
A energia dos alunos é gostosa: sentir um futuro grávido de sonhos abre o presente.
Mas nem sempre é assim. Muitos, a maioria, quer é saber o que vai sr quando crescer, e não quem. Um chamado João Heraclitino desenha diplomas na carteira escolar durante a aula de cálculo. Realmente, é este um sonho bem funcional. Mas existe aí uma força de rio que corre silencioso subterraneamente; é um sonho. E sonho não tem função. Não somos nós que sonhamos: somos é sonhados. Trata-se de um existir real, solto das formas? Pode? Sonhar é prender um peixe no vento. E soltar um menino em seus diplomas...O sonho sonha o menino.Quem se prende no diploma sai de entrar em si.
O fato- que é feito de vento- é que na noite desse dia tudo corria bem. Mas já desde a tardinha algo deformava oculto. Alguns alunos, no penoso dever de dar conta de toda a matéria, juntaram-se num grupo: monitorias. João Heraclitino ralhava consigo: - meu diploma. Minha carreira para fazer a vida, pensava com o corpo inteiro. Apenas os olhos se desviavam disso, tentando copiar o por-fazer.
E foi quando alguém-que-não-sei-quem chegou na porta do curso para doar livros. Enormidade de folhas, capas-duras e colorido algum. Mas os alunos esqueceram de perguntar qual o conteúdo a ser doado e o material se desviou. Esquivou-se já desimportante, pois o dono decidiu depositar tudo numa rua escura dos arrabaldes.
Já era o horário do intervalo. Juntos foram todos à padaria, como era costumeiro. Comuns, comum-unitários: comunitários das coisas, iam desfiando acelerada prosa quando aconteceu. Meus alunos, agora algum ganharia os braços e pernas do mundo e nunca mais seria o meu, encontraram pilhas de livros lançados numa calçada escura, no ermo do coração de São Francisco, bairro de nome humildezinho; pois foi Francisco homem alheio a coisas com formato pré-pronto e que ao invés de juntar apartam. Um por um, foram se felicitando, descobrindo livros de cálculo e de administração. Porém algo naquelas pilhas desabou e João Heraclitino desconheceu-se.
Empolgados, os alunos levaram para o curso dezenas de livros. Exauriram braços, pernas, lombares...Quando tudo já era achado e desimportante e sobrava quase nada, quase o nada, foi que João Heráclito chegou lá. Fuxicou os restantes e encontrou Pessoa. Quando tudo já era perdido e desimportante, João Heráclito achou Drummond e Rosa. Naquela pilha de xepas, eles só podiam ser inúteis. Ao retornar, João me disse decepcionado: -Eles não tem utilidade..De súbito, devolvi: - Mas João; é este o seu encanto. DEpois dali não tive mais o que ensinar. Se o mundo fosse feito apenas de encantados, a terra desabava no céu.
Fosse ele feito apenas de encantadores, seria o céu quem desbava na terra. Mas se o céu desabasse na terra, a terra também precisaria desabar no céu: Encantador ou encantado? Agora João é encanta-dor. Transpassar o que sangra, mas também é encantado: pois foi o sonho que sonhou o peixe solto no vento, descobrindo o mar. Água da palavra.
Acho que foi assim que aprendi a ensinar o que é inútil.