10.1.11

Por uma estética da imagem

Sempre que se fala academicamente de arte, lá se vão novelos de teorias, conceitos e métodos; olhares sempre externos à obra, em busca de um lugar ao sol no eldorado da crítica. Acontece que enquadramento conceitual não é tudo que se há por fazer: é preciso também salvaguardar um lugar...para a própria arte.
Para pensar em arte, nada melhor...do que uma obra de arte! Me cavalga hoje o exemplo do filme Morte em Veneza, de Visconti; ali se fala sobre arte com arte. A angústia paradoxal do músico que absorve o real por conceitos, moralmente, como se arte fosse algo alcançável apenas pelo absoluto do espírito, por uma educação correta, por caráter, pelo uso da razão para construir. A arte como manifestação apolínea.

O filme circula muito em torno do embate entre a visão de Gustav Auschenbach e a de seu amigo Alfred; Dioniso nos olhos, este pensa a música como algo ao qual se chega pelos sentidos, fora da moralidade de conceitos que expressam valores já disponibilizados pela cultura humanista historicamente. Estar fora da moral, fora do conceito, é estar dentro do que não possui fora: ou a realidade tem beiradas? Para Alfred, um musico não difere de sua arte enquanto humano, quando há experienciação, mesmo que seja catrastófica, caótica, dolorosa, e não apenas conceitualização. Uma imagem potente disso é o sonho de Gustav: vaiado numa apresentação, se tranca num camarim, enquanto Alfred quer que ele tenha contato com aqueles que reclamavam de sua música, quer atirá-lo aos cães, insaciáveis. Agora não há conceito. Agora não existe representação. Artista e arte são feitos vida: - Agora você já pode caminhar com sua música rumo ao seu túmulo! Fazer arte não é suficiente. Importa é ser arte! Mesmo que o preço disso seja a ruína social, moral, biológica; mesmo que seja a destruição da vida que vigora em si.

O que a arte destrói, com radicalidade, é essa necessidade científica de se distanciar das coisas e olhá-las com o escudo do embasamento teórico. Por que não ver por si? Por que não correr o risco de se soltar e sentir dor e alegria? Por que não ver e ser o que a própria coisa emana? É isso que vive Gustav, ao se apaixonar, diante da figura do menino Tadzio. Uma paixão pelo belo, a-moral, onde paradoxalmente não importa nenhum toque físico sequer, pois a paixão não é pelo sujeito, bíos, e sim pela vida em si, zoé. O menino é a mudança de uma interpretação conceitual da realidade, para uma vivência visceral do real e isso não é externo a dor, não tem moral nem sistema: São imagens, oferecendo à vida, sentido.

Por isso, nada melhor do que pensar e vivenciar arte, pela arte. Morte em Veneza prescinde de teóricos para cumprir isso, da mesma forma que O céu de Lisboa, de Win Wenders, ao falar de cinema. O que cabe nessa fala é o que des-cabe numa obra de arte: produzir imagens que nos movimentam questões, por falar com nossa dimensão humana e não modelada por humanismos tacanhos. Mesmo que a vida seja tão bela que o minúsculo do corpo não suporte o que matéria não tem. Mesmo que tanto céu, tanto mar, tanto menino, todo, preencham de nada o corpo que se desmancha frente ao belo e isso seja insuportável, é necessário viver e não apenas verificar, sistematizar.

Viver é preciso. Mas viver, não é preciso.