22.12.09

Ser ou não ser: Não eis a questão.


Hamlet, Príncipe da Dinamarca, peça de Willian Shakespeare, pode ser considerada uma obra de arte. Mas por que? Diria o Riobaldo de João Guimarães Rosa que vivendo se aprende; o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas. É sem buscar uma resposta que torne verificável o antes perguntado, que busco um caminho. Obras de arte são questões: não explicadas conceitualmente, por teorias da arte, e sim antes de tudo experienciáveis. A arte como enigma que transcende o gosto de espíritos tais como os dos cientistas que querem saber um passarinho dissecando-lhe o corpinho. A ciência pode dissecá-lo sim, mas nunca medir seu canto, pois sabiás divinam. Resta então o que sobra: tudo! Contemplar o enigma, ser o enigma.
Como questão, toda obra de arte pergunta um mesmo tema; o que é o real? Queremos escutar essa questão, trazendo-lhe à experiência, adentrando-lhe com alma, olhos e coração na famosa passagem do terceiro ato de Hamlet que a seguir cito:

Ser ou não ser...eis a questão. Será mais nobre suportar as pedradas e as flechadas de uma fortuna cruel, ou pegar em armas contra um mundo de sofrimentos e, resistindo, acabar com eles?

É buscando a escuta do humano e do real enquanto questionamento que perguntamos: Em que medida ( ou des-medida) é possível apenas ser ou apenas não ser?
Ao questionar-se, Hamlet pensa. E pensando, consuma a relação do ser com a essência do homem. O pensamento é que consuma seu Telos, sua travessia, elevando o homem à plenitude de realização. Entretanto, o pensar não produz essa relação: ele apenas oferece-a ao ser, como aquilo que a ele próprio foi confiado pelo ser. Quando a Zoé, que é a vida em geral, a vida de todos os viventes, entra na Bíos, nos traços característicos de uma vida especifica, ou seja; no homem, em Hamlet, o pensamento restitui a Bíos a sua essência; são doações do ser, na des-medida em que é no pensar que o ser se torna linguagem: se doa como realidade. É pensando o real, restituído pelo ser, que Hamlet é tomado pela questão.
Mas dentro desse ser, dessa unidade, também há o que não somos, também existem paradoxos, que são...partes de um todo. A partir dessa multiplicidade da Bíos, de como o homem consuma sua relação com o ser, gostaria de colocar a questão de Hamlet com o reposicionamento desta, feito pelo poeta mineiro Murilo Mendes.
Em sua organicidade assimétrica, Murilo Mendes, segundo Joana Matos Frias, é heterogêneo; espécie de poeta do descentramento. Em Pós-poema, presente no livro Poesia Liberdade, o poeta diz:
O anteontem- não do tempo mas de mim-
Sorri sem jeito
E fica nos arredores do que vai acontecer
Como menino que pela primeira vez põe calça comprida.

Não se trata de ilusão, queixa ou lamento,
Trata-se de substituir o lado pelo centro.
O que é da pedra também pode ser do ar.
O que é da caveira pertence ao corpo:
Não se trata de ser ou não ser,
Trata-se de ser e não ser.

Ser e não ser: eis a questão. A unidade de ser também inclui porções de não-ser. Como diria Rosa: Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não existem palavras. Talvez também sejamos aquilo que não somos, e isso componha o todo. Como ser feliz sem assumir a tristeza como questão? Como ser próximo sem encarar a questão da solidão? Como viver a dois, se junto de nós não houver diferença? Pensando, questionando, temos o oferecimento do ser, sua doação, também pelos vazios, pelas porções do que não somos...É o poema Mapa, onde Murilo diz:
Me colaram no tempo, me puseram
Uma alma viva e um corpo desconjuntado(...)
Danço, rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado, gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
Alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.

Mesmo heterogêneo, mesmo sendo-e-não-sendo, Murilo Mendes também entende a obra de arte como um lugar de conciliação de contrários, talvez pela universalidade da arte em seu guardar questões. Guardar para oferecer enquanto caminho de vida.
Essa conciliação de contrários pode ser observada em alguns aforismos de seu livro O discípulo de Emaús, como por exemplo: O absoluto é primeiro motor de todas as relatividades. Ou então: Aceita os contrários, para atingires a identidade. Centro de convergências, é no homem, questionado, que são conciliados esses opostos, recriando relações construtivas, como em outro aforismo muriliano:


A vida nos oferece em seu curso as emoções mais opostas- emoções necessariamente opostas, pois de outra maneira não teríamos relações construtivas.

No ser e não ser, temos um equilíbrio pela oposição. É o equilibrista que busca firmar-se justamente na precariedade da corda bamba a plenos ares...Nosso Hamlet também equilibra-se, afirmando a certeza ou a dúvida de que em toda porção de ser, também ocultam-se porções de não-ser. É como no erro, sempre visível aos olhos afetados. Como podem estes ter ciência da porção de acertos velada pela busca incessante pelo erro? Quantos acertos, quantas coisas que são, escondem-se no erro e tornam-se porções eternas e talvez injustas de não-ser?
A dúvida de Hamlet questiona radicalmente o Ocidente que se faz cultura das certezas, da objetividade. Hamlet é a perplexidade diante das certezas. Não é uma duvida mecânica, burocrática e paralisante, mas sim revolucionária, pois ele não quer cair na funcionalidade da vingança pela vingança, porque aceitando ser e não ser como paradoxo, Hamlet mergulha nas questões, que não buscam respostas, conceitos, e sim...mais perguntas, um salto para a vida. Se não aceitasse a dúvida, se apenas fosse um lado, Hamlet seria só vingança. E, no entanto, pede perdão ao rei, deseja paz....Mas a máquina funcional leva o príncipe a matar Laertes. Não é isto um paradoxo? Hamlet queria uma terceira coisa, paradoxal, a qual não se sabe... Talvez fosse definido ali contraditório e resistente ás certezas claras. Talvez murmurasse, de tão dentro em si, coisas graves, grandes, sem som nem sentido...
Hamlet é composto de partes de um todo, de um ser que afirma a vida sendo e não sendo. Talvez a grande tragédia humana seja mesmo assumir a vida em suas contradições...


É possível que o papel do crítico seja fazer da critica um espaço de arte. Sem o simples jogo de remeter-se a cânones bibliográficos, mas sim se permitindo criar, ao ler no dito aquilo ainda não dito. Assumindo o paradoxo, Hamlet busca ser e acaba encontrando também sua porção de não-ser: são partes dialógicas da totalidade, pois não apenas se vive. Morremos. Mas nem mesmo a morte, como a vida, é um todo unitário. A morte possui porções de não ser, e o não ser da morte é a afirmação máxima de, morrendo, viver! Hamlet, morrendo, quer que Horácio conte sua estória, que afirme vida! Como disse Rosa em seu discurso de posse na ABL, prestes a tomar posse de não ser: - As pessoas não morrem. Elas ficam encantadas...

Um comentário:

Denise Andrade disse...

Hamlet, Rosa e Mendes rs
amei!
e claroooo, preciso ler de novo.
depois falamos...
beijo.