19.5.10

Encanta-dor

Na noite daquele dia que quase não há tudo corria bem. Era minha noite de apenas coordenar o pré-vestibular comunitário. Então, adjutorava o professor de Português. Aula não dava. E nem poderia. Só não sabia ainda era o motivo ou o des-motivo disso.

A energia dos alunos é gostosa: sentir um futuro grávido de sonhos abre o presente.

Mas nem sempre é assim. Muitos, a maioria, quer é saber o que vai sr quando crescer, e não quem. Um chamado João Heraclitino desenha diplomas na carteira escolar durante a aula de cálculo. Realmente, é este um sonho bem funcional. Mas existe aí uma força de rio que corre silencioso subterraneamente; é um sonho. E sonho não tem função. Não somos nós que sonhamos: somos é sonhados. Trata-se de um existir real, solto das formas? Pode? Sonhar é prender um peixe no vento. E soltar um menino em seus diplomas...O sonho sonha o menino.Quem se prende no diploma sai de entrar em si.

O fato- que é feito de vento- é que na noite desse dia tudo corria bem. Mas já desde a tardinha algo deformava oculto. Alguns alunos, no penoso dever de dar conta de toda a matéria, juntaram-se num grupo: monitorias. João Heraclitino ralhava consigo: - meu diploma. Minha carreira para fazer a vida, pensava com o corpo inteiro. Apenas os olhos se desviavam disso, tentando copiar o por-fazer.

E foi quando alguém-que-não-sei-quem chegou na porta do curso para doar livros. Enormidade de folhas, capas-duras e colorido algum. Mas os alunos esqueceram de perguntar qual o conteúdo a ser doado e o material se desviou. Esquivou-se já desimportante, pois o dono decidiu depositar tudo numa rua escura dos arrabaldes.

Já era o horário do intervalo. Juntos foram todos à padaria, como era costumeiro. Comuns, comum-unitários: comunitários das coisas, iam desfiando acelerada prosa quando aconteceu. Meus alunos, agora algum ganharia os braços e pernas do mundo e nunca mais seria o meu, encontraram pilhas de livros lançados numa calçada escura, no ermo do coração de São Francisco, bairro de nome humildezinho; pois foi Francisco homem alheio a coisas com formato pré-pronto e que ao invés de juntar apartam. Um por um, foram se felicitando, descobrindo livros de cálculo e de administração. Porém algo naquelas pilhas desabou e João Heraclitino desconheceu-se.

Empolgados, os alunos levaram para o curso dezenas de livros. Exauriram braços, pernas, lombares...Quando tudo já era achado e desimportante e sobrava quase nada, quase o nada, foi que João Heráclito chegou lá. Fuxicou os restantes e encontrou Pessoa. Quando tudo já era perdido e desimportante, João Heráclito achou Drummond e Rosa. Naquela pilha de xepas, eles só podiam ser inúteis. Ao retornar, João me disse decepcionado: -Eles não tem utilidade..De súbito, devolvi: - Mas João; é este o seu encanto. DEpois dali não tive mais o que ensinar. Se o mundo fosse feito apenas de encantados, a terra desabava no céu.
Fosse ele feito apenas de encantadores, seria o céu quem desbava na terra. Mas se o céu desabasse na terra, a terra também precisaria desabar no céu: Encantador ou encantado? Agora João é encanta-dor. Transpassar o que sangra, mas também é encantado: pois foi o sonho que sonhou o peixe solto no vento, descobrindo o mar. Água da palavra.

Acho que foi assim que aprendi a ensinar o que é inútil.

Um comentário:

Denise Andrade disse...

!!!
puts
lindo!
E agora "João"?
rs
bj